segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

a rapariga que nunca sorria

Faço todos os dias o mesmo caminho para o trabalho, faça chuva ou sol. Não é que eu goste deste tipo de rotinas, se houvesse outro caminho igualmente rápido, eu ia alternando.
Há uns tempos, reparei em algo prestes a tornar a minha pequena rotina mais agradável: passe a cruzar-me com uma rapariga, eu de carro, ela a pé. É uma rapariga normalíssima, nem gorda, nem magra, nem alta nem baixa. Tem um andar engraçado, desengonçado e uns olhos claros, bonitos. todos os dias passamos duas vezes pelo mesmo sítio, em sentidos opostos.
Comecei a sorrir para ela. Podem achar que isto é uma coisa tonta de se fazer, afinal de contas, quem é que olha para os condutores dos carros por quem passa a pé? Claro que ela não olhava, mas todos os dia eu tentava, e sorria. 
Nunca me passou pela cabeça apitar ou fazer qualquer coisa que lhe chamasse a atenção. Ou melhor, passou, mas não queria fazê-lo. Ela acabaria por achar que eu não bato bem. É verdade que não bato, mas ela escusava de saber assim.
Então fui sorrindo e esperando, que algum dia, ela se lembrasse e de olhar. E passados alguns meses, esse dia finalmente chegou. Ela olhou. Eu sorri. Não me devolveu o sorriso. Terá olhado mesmo? Fiquei na dúvida e continuei a sorrir, todos os dias. Mas parecia-me sempre que ela não olhava. 
Então houve um dia que parei numa fila e quando olhei, lá estava ela, do outro lado da rua. Esperei que olhasse. Esperei, esperei... e ela finalmente olhou! Presenteei-a com o meu melhor sorriso para logo de seguida desaparecer no trânsito, a fila começou a andar na altura certa.
A partir daí, quase que ia jurar que me passou a olhar, mas não sorria.
Houve outro dia que deixei o carro na oficina e fui de bicicleta. Fiz o mesmo percurso que costumo fazer de carro, que é mais longo e a subir do que costumo fazer de bicicleta, mas valeu a pena, porque quase no final do percurso onde nos podemos cruzar, ela apareceu, mesmo em frente a mim, e ali mesmo a presenteei com um generoso sorriso de orelha a orelha. Foi tudo muito rápido, não deu para saber se sorriu, mas fiquei com a certeza de que me viu.
Comecei a pensar como seria se a encontrasse a pé, noutro local. Afinal de contas não moramos nunca cidade assim tão grande, é coisa para ter alguma probabilidade de acontecer. E aconteceu mesmo, um dia fui às compras depois do trabalho, e quando me dirigia a pé para o supermercado, cruzei-me com ela. Logo tratei de esboçar o meu melhor sorriso, aquele que uso em dias de festa, para a receber. Ela olhou para mim e passou como se nada fosse. Será que não sabe sorrir?

Mas eu não desisti. Continuei a sorrir de manhã e depois de almoço, religiosamente, todos os dias em que a via. E nos outros também. É um passatempo como qualquer outro, anima a minha rotina, não faz mal a ninguém, e se quiserem achar que não bato bem, que achem.
Pensei em comunicar de outra forma que fosse inequívoca em relação às minhas intenções, não fosse a rapariga achar que era algum depravado. Sei que não sou um modelo, sou um pouco mais velho que ela, mas também acho que não tenho ar de depravado. Um sorriso sincero para troca é só o que quero, será que é assim tão difícil?
Muni-me de papel cor-de-laranja e caneta de feltro azul e desenhei um "smiley". Para que não restassem dúvidas, por cima escrevi "SORRI!" E estava determinado a mostrar-lhe o cartaz da próxima vez que a visse.
Depois de algumas tentativas frustradas, lá consegui que lesse, ou pelo menos que olhasse para o papel. Não sei se leu, porque a verdade é que não sorriu. Eu pelo menos não lhe vi nem sequer um esboço, uma intenção de sorrir. Será que a vida lhe corre assim tão mal?
De vez em quando via-a olhar para mim, parecia reconhecer-me, talvez me ache depravado, não voltei a sorrir. Em vez disso, decidi levar novamente o sorriso de papel e fazer beicinho quando a visse. Passaram semanas, meses, até que finalmente, num dia cinzento de chuva, ela viu o cartaz. Foi ali que ela ergueu um pouco a cabeça, olhou para mim e finalmente sorriu. E fez sol, arco-íris de pernas para o ar dentro de mim.

Queen, Breakthru

6 comentários:

Anónimo disse...

Caso para dizer, no porfiar está o ganho!

Um sorriso!

carpe vitam! disse...

Porfiar soa um bocado estranho. Não é que goste muito de insistir, mas por vezes é mesmo preciso. Bastante. Saber quando se deve desistir, isso sim, é que me dava imenso jeito. Enquanto não acerto, vou tentando.

Anónimo disse...

Apesar de tudo, parece-me ser o verbo mais indicado para a situação.
Já "meter a viola no saco", pois, eu tendo em tratar disso demasiado cedo.
Bom, pelo menos não sou corrido! :)))

carpe vitam! disse...

É só porque não é palavra que pertença ao meu léxico. Prefiro persistir (costumo dizer que não teimo, persisto!) Mas se sorrires, podes dizer porfiar à vontade que me soa muito melhor :)

Anónimo disse...

AHAHAHAHAHAH
Gargalho, até!

amèlie e juan disse...

é estranho de facto por que par umas pessoas o sorriso é como respirar e para outras... parece que vão morrer se esboçarem a mais discreta linha que seja...