Há algum tempo atrás perguntaram-me se gosto
de
conduzir. A pergunta pareceu-me um bocado disparatada, como se me
perguntassem se eu gosto de andar. Porque de facto, é isso que sinto, como se o
meu carro fosse um prolongamento do meu corpo que me faz andar mais
depressa, deslizar nas artérias de asfalto ou rasgar devagar pequenas v(e)ias de terra batida. Por isso a resposta é depende. Há alturas em que não me apetece andar, não
gosto de filas de trânsito, nem de não encontrar lugar para estacionar. Quem gosta? Mas aprecio a liberdade que me dá para poder ir aonde me apetece, sem
depender de ninguém. Tal como aprecio uma boa caminhada,
conduzir permite-me viajar
e conhecer os sítios que quero, dentro do meu orçamento para combustível, claro.
Mas nem sempre foi assim, foi uma conquista gradual. Ninguém
nasce a saber conduzir, embora algumas pessoas tenham mais aptidão que outras.
Lembro-me de quando o meu pai teve a ideia peregrina de me fazer conduzir o
carro da família, na véspera da minha primeira aula de condução. Era um Ford
com teto de abrir, muito confortável, 1300 cc, que eu conduzia pela bordinha da estrada, muito devagarinho, com
muito medinho… até que ele me pediu para parar numa pequena subida e eu nunca
mais consegui sair dali. Condutor exímio que era e fazia disso a sua profissão,
perdeu a paciência e trocámos de lugar enquanto ele me explicava o ponto de
embraiagem e fê-lo também numa descida, instantaneamente. Achei que jamais
conseguiria fazê-lo, que se há pessoas que têm talento nato para a coisa, eu
definitivamente não era uma delas, aquilo era muito difícil, era preciso muita
técnica, equilibrar a aceleração e a embraiagem requeria mestria.
Não dormi muito bem nessa noite, mas escusado será dizer que
a aula me pareceu incrivelmente fácil e apesar de não ser nenhum piloto
profissional, não tive grande dificuldade em passar à primeira no
exame de condução, embora na altura nada fosse intuitivo e tivesse de
estar sempre a lembrar-me de pôr a 1ª quando parava e fazer muitas azelhices
típicas de maçarico do volante.
Mas practice makes
perfect, e nada como conduzir mais para conduzir melhor. Depois de alguns
anos de treino, uma perfeita simbiose aconteceu e máquina e eu passaram a ser
um só, o tal prolongamento do corpo, com o qual me posso expressar e deslocar. Claro
que isto não acontece com todos os carros, apenas com os que conduzo
habitualmente, já sei instintivamente o espaço que necessito para virar, para
fazer qualquer manobra, sei a quantidade de aceleração necessária para equilibrar
o ponto de embraiagem instantaneamente e onde estão todos os botões necessários.
Ligo o piloto automático e por vezes vou parar aos sítios sem me lembrar muito
bem como, embrenho-me de tal forma em outros pensamentos e deixo o meu corpo,
a minha memória, fazer o resto automaticamente.
Sem dúvida que as máquinas mais caras que eu já manobrei são
carros. E durante uns tempos, tive oportunidade de manobrar bastantes, de todos
os tamanhos e feitios, e perceber que cada um é diferente, com um temperamento
próprio, não me consigo entender com todos à primeira. Mas com algum diálogo,
alguma prática, todos são conduzíveis. Um carro pode também ser uma arma letal.
Felizmente, nunca tive nenhum acidente aparatoso, apenas alguns sustos, uns
provocados por mim, outros tantos provocados por outros condutores. Tenho
muitas vezes consciência de que se me despistasse à velocidade que vou, não
apanharia apenas um susto. Mas conduzir na estrada é um acto de fé, com riscos
minimizados se obedecidas as regras elementares de segurança. O cinto é
automático, já me livrou de várias mazelas, nem me sinto confortável se não o
puser, parece que falta qualquer coisa.
To drive or to be
driven? Dá sempre vontade de agarrar o volante? Quem não gosta(ria) de ser levado ao colo de vez em quando? Quem não gosta de
dormir no lugar do pendura quando confia em quem conduz? Caríssimos condutores, companheiros de estrada, dada
a escolha, que preferem?
Música: Are you gonna go my way?, Lenny Kravitz
Foto: Corbis
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